Projeto de lei que concede isenção tributária às ONGs de proteção animal produzirá efeito contrário

Projeto de lei que concede isenção tributária às ONGs de proteção animal produzirá efeito contrário
Sede da UIPA, em São Paulo, SP. (Foto: Arquivo UIPA)

Por Vanice Teixeira Orlandi*

Introdução

Em 2015, a Uipa elaborou o projeto de lei federal nº 2551/2015, que visava dar isenção das contribuições para a seguridade social para as associações protetivas dos animais que, sem fins lucrativos, desenvolvam atividades de recolhimento, manutenção, recuperação, esterilização e encaminhamento à adoção de cães e gatos.

Tais entidades passariam a ser classificadas como entidades beneficentes da assistência social, com atuação na área da saúde, e, portanto, beneficiárias da imunidade tributária, em relação às contribuições sociais para a seguridade social, e também em relação aos demais impostos.

Depois de ter sido aprovado em algumas comissões, o projeto de lei nº 2551/2015 foi arquivado, provavelmente em virtude do fato do autor do projeto ter deixado a Câmara dos Deputados. Seu texto original, entretanto, foi convertido no projeto de lei nº 6222/2019 que, na Comissão de Seguridade Social e Família, recebeu um substitutivo que acrescentou ao projeto original exigências inconciliáveis com a natureza das atividades desenvolvidas pelas associações protetoras.

Isso porque o substitutivo ao projeto de lei emprega denominações e fórmulas que são próprias e cabíveis apenas aos beneficiários dos serviços prestados pelas associações de assistência social voltada a humanos, e  não às associações que desempenham suas atividades em defesa dos animais.

Dos requisitos previstos no projeto de lei original

Pelo texto do projeto original (PL nº 2551/2015), seria concedida a isenção à entidade que, no exercício fiscal anterior ao do requerimento, demonstrasse cumprir, cumulativamente, os seguintes requisitos:

I – estar constituída há mais de 12 (doze) meses como pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos;
II – recolher, manter, recuperar, esterilizar e encaminhar à adoção cães e gatos;
III – prever em seus atos constitutivos, em caso de dissolução ou extinção, a destinação do eventual patrimônio remanescente à entidade sem fins lucrativos congêneres ou a entidades públicas.”

Dos requisitos previstos pelo Substitutivo

Aos requisitos exigidos pelo projeto de lei original, para que a entidade tivesse direito à isenção, foi acrescentado um requisito que consta do artigo 1º, inciso II, do substitutivo ao PL 6222/2019: 

“II – prestem serviços ou realizem ações de proteção e defesa dos animais de forma gratuita, continuada e planejada, sem discriminação em relação ao usuário; e”

A expressão “de forma gratuita, continuada e planejada, sem discriminação em relação ao usuário”., acabou por introduzir quatro requisitos ao projeto.

Vale dizer que, além dos requisitos que constavam do projeto original, a ONG também terá que exercer suas funções estatutárias de forma gratuita, continuada, planejada e sem discriminação em relação ao usuário.

Sobre a expressão “sem discriminação em relação ao usuário”

Convém ressaltar que o termo “usuário”, que consta inciso II, do artigo 1º, do substitutivo ao PL nº 6222/19, não se adequa às atividades desenvolvidas pelas associações protetivas dos animais, e sim às entidades de assistência social, compreendidas como aquelas que prestam serviços na área de assistência social propriamente dita, saúde e educação.

Os beneficiários desses serviços, como se dá no caso dos cidadãos atendidos pelo SUS-Sistema Único de Saúde, podem ser denominados como “usuários”. Isso porque o SUS é um sistema público que dá acesso gratuito, universal e integral a todos os cidadãos brasileiros. Nesse caso, é esperado que se exija da entidade conveniada ao SUS, que preste serviço de forma planejada, continuada, gratuita e sem qualquer discriminação aos seus usuários.

Já no caso dos serviços prestados pelas associações protetivas, não existem usuários específicos e determinados, tendo em vista que toda a coletividade é beneficiada pelas atividades desenvolvidas pelas ONGs. Vai daí o fato de algumas ONGs, como a própria Uipa, possuir título de utilidade pública municipal e estadual.

De fato, existem associações protetivas que, sem fins lucrativos, efetivam as políticas públicas preconizadas para o controle da população animal e das zoonoses, que incluem acolhimento, recuperação, esterilização, encaminhamento à adoção e conscientização pública para a vacinação, a esterilização e o não abandono de cães e gatos.

Referidas atividades, há muito, são consideradas como ações de prevenção em saúde pelas autoridades sanitárias porque em tudo  coincidem com as regras sanitárias preconizadas pela Organização Mundial de Saúde, pela Organização Pan-Americana de Saúde e pelo Instituto Pasteur.

Alerta o Instituto Pasteur  para o risco da procriação desenfreada, em seu Manual Técnico  de nº5, p.23,     ao enunciar que “a diminuição do número de animais abandonados é de grande importância para promover o controle da raiva e de outras zoonoses….”

E no tocante ao controle da raiva, a Organização Pan-Americana de Saúde recomenda a vacinação em massa, o controle populacional e a educação para a guarda responsável  como sendo a estratégia utilizada de forma eficaz, mundialmente aceita  e reconhecida como  suficiente.

Considerando que a procriação desenfreada de cães e de gatos e a permanência desses animais, em situação de abandono em vias públicas, é fator facilitador das zoonoses e de outros agravos, é forçoso reconhecer que as atividades desempenhadas pelas associações de proteção aos animais assumiram foros de fundamental relevância para a saúde pública.

A toda evidência, as associações protetivas que apresentam o perfil descrito pelo projeto de lei original  atuam na defesa da incolumidade pública.Não existem portanto “usuários” dos serviços prestados pelas associações protetivas, à medida que seu trabalho beneficia toda uma coletividade, e não um indivíduo específico e determinado.

 E a expressão “sem discriminação em relação ao usuário” ainda pode significar que a ONG estaria obrigada a atender a todas as solicitações que lhes chegam por meio de munícipes, o que pode representar dezenas de pedidos diários, tarefa essa que ONG alguma consegue realizar. Qualquer recusa poderá ser interpretada como discriminação.

Sobre a expressão “ações de proteção e defesa dos animais de forma gratuita”

Sem ajuda alguma do Poder Público, as ONGs que acolhem, recuperam, mantêm e encaminham à adoção cães e gatos vitimados por abandono, acidentes e maus-tratos suportam despesas altíssimas  referentes a salário de funcionários, de veterinários e cirurgiões, compra de ração, de medicamentos, de vacinas, de vermífugos e de material cirúrgico, exames laboratoriais e de imagem, material de limpeza e de construção, pagamento de água, luz, telefonia e informática, pagamento da empresa que dá destinação aos dejetos dos animais, honorários contábeis, manutenção das instalações  et cetera.

A título de ilustração, podemos citar alguns gastos com que arca a Uipa, União Internacional Protetora dos Animais, que é a pioneira, responsável pela instituição do Movimento de Proteção Animal no país, ainda no século XIX, em maio de 1895.

À frente de um abrigo onde hoje encontram-se mais de 600 (seiscentos) animais, entre cães e gatos, a Uipa despende cerca de R$35.000,00 (trinta e cinco mil reais) ao mês, apenas com a aquisição de ração.

O gasto mensal com água chega a R$14.000,00 (catorze mil reais), ao mês.

Como se trata de um abrigo, a entidade mantém funcionários trabalhando durante todo o período diurno e noturno, sete dias por semana, o que gera elevados encargos trabalhistas.

Grande parte dos animais que acolhe são vítimas de atropelamento, que necessitam de onerosas cirurgias ortopédicas.

Bem altas e frequentes também as despesas com reforma e manutenção de seu abrigo, instalado em uma área de quase nove mil metros quadrados.   

Como as doações são escassas, e não conseguem fazer frente ao enorme custo que representa a manutenção de um trabalho tão oneroso, a Uipa possui em sua sede uma clínica veterinária, a primeira do país que,  sem fins lucrativos, reverte toda a sua receita para cobrir as despesas geradas pelas atividades da entidade.

Clientes pagantes de sua clínica veterinária sustentam, portanto, parte do trabalho da Uipa. Por óbvio que tal cobrança, ainda que praticada em uma entidade sem fins lucrativos, pode ser interpretada como um óbice à sua isenção, uma vez que o Substitutivo em questão exige a gratuidade como requisito para certificá-la como entidade beneficente de assistência social.  

Assim como as outras ONGs, a Uipa cobra uma taxa de adoção que se destina a cobrir uma ínfima parte dos gastos representados pelo acolhimento de um animal, como exames, castração, vacinas, vermifugação etc. Muitas vezes o animal precisa ser recuperado antes de ser encaminhado à adoção, o que significa um gasto ainda mais expressivo.  Embora muito pequena se comparada às despesas envolvidas com um acolhimento, essa taxa de adoção também pode representar um obstáculo à concessão de isenção.

Mesmo as ONGs que não cobram essa taxa, acabam por vender produtos para franquear o seu sustento, além de rifar objetos doados, de sorte que   a menção à gratuidade pode vir a ser tido como um impedimento à concessão de isenção.

Sobre a expressão “continuada e planejada

Para que a entidade tenha direito à isenção, suas atividades deverão ser prestadas de forma “continuada e planejada“, exigência que parece destoar da realidade das ONGs que acolhem, recuperam e encaminham animais à adoção.

De regra, as ONGs que possuem um abrigo enfrentam um dilema diário. São numerosos e frequentes os pedidos de resgate a cães e gatos e não há vagas suficientes pata todos, uma vez que a demanda é muito maior do que a capacidade das entidades de absorver o elevado número de abandonados. Triagens são realizadas conforme a gravidade do caso e a disponibilidade de vagas. O número de adotados é sempre menor do que o número de animais a serem acolhidos, sobretudo se a entidade for, como deve ser, criteriosa ao efetivar a adoção dos que já estão sob sua guarda.

 E essa situação se agrava em tempos de crise, quando o abandono aumenta e as adoções decaem, o que também ocorre em certos períodos do ano em que o público está voltado para celebrações, festas e gozo de férias.  

Diante dessa realidade, tanto a continuidade como o planejamento das ações de defesa acabam comprometidos, tendo em vista que são muitas as variáveis que fogem ao controle das ONGs.

Se a continuidade e planejamento das ações de proteção e defesa a que se refere o Substitutivo ao projeto incluir, necessariamente, o acolhimento de novos animais, as ONGs também não conseguirão dar conta de atender à essa exigência.

Breve Conclusão

Convém frisar que os animais vitimados por abandono e maus-tratos são retirados das vias públicas,  recuperados e encaminhados à adoção, diretamente, por associações protetoras, sem qualquer subsídio do Poder Público.

Em sua dificultosa tarefa de enfrentar a problemática do crescente número de animais abandonados, o Poder Público não dispõe de um órgão que possa recolher, recuperar, manter e promover a adoção de cães e gatos; as divisões de vigilância de zoonoses não possuem tal competência, além de não dispor do aparato necessário ao cumprimento de tais finalidades.

Dessa forma, as associações protetoras constituem o destino dos animais apreendidos por maus-tratos, para lá encaminhados pelas próprias autoridades que não dispõem de um órgão público capaz de acolhê-los. 

E tais associações, no limite de sua capacidade, ainda atendem aos reclamos da sociedade que, não querendo deparar-se com animais deixados à própria sorte, recorre às associações protetoras para ampará-los.

Questão que se deve ainda considerar diz respeito ao expressivo valor que deixa de ser despendido pelo Estado para dar destinação aos animais, uma vez que acabam acolhidos pelas associações protetivas. Não fosse por elas, o Estado teria altos gastos para recolher, recuperar esterilizar e manter cães e gatos. Convém lembrar que o método simplista baseado no recolhimento seguido de eutanásia, por décadas praticado no Brasil, além de cruel e ineficaz,   constituía uma tarefa extremamente custosa ao Estado.

É forçoso reconhecer, portanto, que tais associações laboram, sem fins de lucro, para o interesse de preservar a saúde pública por meio de políticas relegadas pelo Estado, suprindo-lhe a ineficiência em cumprir as tarefas que lhe incumbem. E esse mesmo Estado que não as subvencionam com um tratamento tributário favorável, e ainda as tributa como faz a qualquer empresa que não existe senão para o lucro.   

Reconhecer as associações protetivas como entidades beneficentes de assistência social da área da saúde, conferindo-lhes a devida isenção de contribuições para a seguridade social, é medida de justiça que se impõe para corrigir tão intolerável distorção e ainda pela necessidade de mantê-las em funcionamento, tendo em vista que desenvolvem trabalho de saúde pública do qual o Poder Público e a sociedade não podem prescindir.

Com a redação dada ao projeto de lei pelo seu Substitutivo que, vale repetir, emprega denominações e exigências que são próprias e cabíveis apenas aos beneficiários dos serviços prestados pelas associações de assistência social voltada a humanos, ficará frustrada a própria finalidade da lei, que é a de corrigir a distorção causada pela injustiça de se tributar uma entidade de proteção aos animais assim como se faz a uma empresa que visa apenas lucro.

Sem que haja a supressão dos requisitos instituídos pelo Substitutivo, a aprovação dessa norma não só deixará de trazer um benefício às ONGs protetivas como virá em seu detrimento, uma vez que inviabilizará, de maneira definitiva, a concessão de  sua isenção.

* Vanice Teixeira Orlandi é advogada, com formação em Psicologia e especialização em Psicologia da Educação. Preside o Conselho Diretor da mais que centenária Uipa, União Internacional Protetora dos Animais, desde 2005 e atua como assessora parlamentar desde 2013.

Fonte: Olhar Animal


Nota do Olhar Animal: O maior problema no projeto é causado pelo substitutivo apresentado pela deputada Carmen Zanotto (Cidadania-SC), que parece não ter dialogado com as organizações ao elaborar o texto. E é a ela que devem ser dirigidas as considerações das organizações sobre este PL que inclusive prejudicará as associações que conquistaram isenções pela via judicial.

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