Qual é a questão que devemos responder?

Qual é a questão que devemos responder?

Por Luciano Carlos Cunha

1. Uma descrição dos fatos

Exploração 

Artigos de couro 

Animais não-humanos são sujeitados rotineiramente a todo tipo de sofrimento e morte. Somente no uso culinário, bilhões deles são mortos mundialmente a cada ano, sendo que boa parte vive uma vida de intenso sofrimento nas granjas industriais, o que inclui a produção de ovos e laticínios (1). O maior número de animais que humanos matam, contudo, se encontra na atividade da pesca (2). Apesar da maioria dos peixes não viverem sob as condições de criação intensiva, suas vidas e o abate em si são geralmente marcadas por intenso sofrimento (seja sofrimento causado por práticas humanas, seja causado pela forma como se dão os processos naturais, como veremos mais adiante), para além da questão sobre o número de mortes. O número de animais de outras espécies mortos quase desaparece frente ao número de peixes mortos. Isso acontece não devido ao número de animais de outras espécies mortos ser pequeno (esse número chega a muitos bilhões), mas sim, devido ao número de peixes mortos ser esmagadoramente maior. 

O uso não se limita à alimentação. Quase todo setor da vida humana é marcado por usá-los: pesquisa, testes laboratoriais, caça, vestuário, entretenimento e na fabricação de quase todo tipo de produto. A maioria desses animais vive sofrimento intenso desde o instante em que nasce até o momento da morte, sem experimentar sequer um único momento de prazer.

Vida na natureza 

A maioria de nós acredita que a vida na natureza é algo próximo de um paraíso para os animais. Essa visão não poderia estar mais longe da realidade. A vida dos animais na natureza não é muito diferente das granjas industriais. A vida selvagem, em geral, devido aos próprios processos naturais (e não, devido à ação humana), é marcada por quase que uma maximização do número de mortes e sofrimento. Se o número de animais mortos na pesquisa, entretenimento e outros setores some frente ao número de animais mortos na alimentação, o número de animais usados no total some frente ao número de animais mortos e que vivem uma vida que é somente sofrimento extremo no mundo silvestre, devido a causas naturais (3). Predação, morte por inanição, parasitismo, congelamento, entre outros danos, são a norma na vida selvagem . A vida dos animais silvestres contém em geral, muito mais sofrimento extremo do que prazer . Isso se deve, em grande parte, à alta taxa de mortalidade anterior à maturidade sexual. Para cada indivíduo que não morre de inanição e não é predado e, por isso, consegue chegar até à maturidade sexual (e, muitas vezes com tantas doenças que sua vida predomina em alto grau o sofrimento), existe um número muito extenso de animais que nasce apenas para sofrer e morrer de inanição e nada mais, sem nenhum instante de prazer. (Em breve publicaremos material detalhado sobre isso)

2. A visão moral predominante

As pessoas conhecem os fatos

Due macellai al lavoro (1582-1583), óleo sobre tela, de Annibale Carracci

A maioria das pessoas conhece os fatos descritos na sessão anterior. É possível que muitas delas não conheçam as maneiras nas quais os animais sofrem na exploração, por exemplo, mas, com certeza, todo ser humano adulto sabe, pelo menos, que está a comer um animal que não morreu de velhice. Pelo menos, todos sabem então que os animais estão a ser mortos para esses fins. Quanto à vida na natureza, é possível que a maioria não saiba que os processos naturais tendem a maximizar a taxa de mortes por inanição de filhotes, mas, por exemplo, quase todo mundo sabe que a predação é uma constante na natureza.

Se as vítimas fossem humanas…

O tratamento de doenças é uma das formas como intervimos na natureza. Todos nós reconhecemos como justificável essa intervenção quando somos nós as vítimas da natureza.

Contudo, apesar do conhecimento da existência de tais danos (literalmente trilhões de mortes e de indivíduos padecendo de sofrimentos extremos durante vidas inteiras), a visão moral (ou seja, a visão que orienta as razões para agir) que predomina na maioria das pessoas é que esses danos não geram razões para não serem causados, muito menos para serem eliminados. E, isso é assim por um motivo: as vítimas de tais danos não pertencem à espécie humana. Sabemos que o motivo é esse porque, se, no lugar de animais não humanos, fossem humanos (bilhões terem de viver uma vida inteira e depois serem mortos na exploração para comida, experimentos, entretenimento, vestuário, ou que estivessem aos trilhões nascendo simplesmente para morrer de inanição, devido a causas naturais ou a serem predados), tal situação seria vista, no mínimo, como a pior coisa que já aconteceu em todos os tempos.

Na moralidade predominante, um dano mínimo sobre um ser humano (por exemplo, gritar com alguém) gera razões para não se causar esse dano e para socorrer os que padecem de tal dano. Em comparação, o sofrimento extremo e a morte dos animais não humanos parece não gerar, na visão da maioria de nós, nenhuma razão para não danar ou para socorrer tais indivíduos.

Uma analogia: a pesca

Pesca

Apenas para citar um exemplo, a pesca é considerada pela maioria como uma prática acima de qualquer suspeita moral. Pegar uma vara, enganar que está oferecendo comida a um peixe, perfurar a sua boca, icá-lo pela boca, causar descompressão enquanto é içado e depois matá-lo por asfixia – tudo isso causa sofrimento extremo, para além do dano de se morrer – é visto como algo moralmente correto, um trabalho honesto e louvável, e um ótimo passatempo em família. Se alguém objeta a tal prática, é considerado louco e fanático, pela maioria. Mas, em compensação, pegar uma vara, enganar que está oferecendo comida a um ser humano, perfurar sua boca, içá-lo pela boca, causar descompressão enquanto é içado, e depois matá-lo por asfixia – o que causa exatamente o mesmo tipo de sofrimento, para além do dano da morte – é visto como um dos tipos de crimes mais hediondos possíveis (aqueles tipos de crime que a mesma maioria que considera correto fazer o mesmo com o peixe considera correto praticar linchamento quando se faz o mesmo com humanos). E, pior ainda se fosse feito com um humano com um desenvolvimento cognitivo em um nível similar ao de um peixe: um bebê recém-nascido.

Na moralidade predominante, decisões que atingem os animais não humanos não são vistas como questões de justiça.

Na moralidade predominante, se alguém escolhe não matar os animais não humanos, é considerado compassivo, amoroso e bondoso – ou seja, que está fazendo algo para além do que seria sua obrigação, para além do que é justo. Não se enxerga as decisões que atingem os animais não humanos como uma questão de justiça. Não assassiná-los é visto como um ato de compaixão, amor e bondade – um favor que se estaria fazendo aos animais não humanos. Em compensação, não assassinar um ser humano é visto como uma obrigação, algo que devemos aos seres humanos como uma questão de justiça. Ninguém considera alguém bondoso, compassivo, amoroso, como se estivesse fazendo um favor, se não assassina outros seres humanos. Acharíamos completamente absurdo dizer que alguém merece elogios por ser bondoso, compassivo, amoroso apenas porque não assassina outros seres humanos. Mas, com relação aos animais não humanos se dá o contrário; não se enxerga nossas decisões que os atingem como uma questão de justiça. Enxerga-se, ao invés, como uma questão de gosto pessoal.

Aliás, defende-se, geralmente, o contrário: que os humanos teriam uma espécie de direito moral de explorar (incluindo causar sofrimento extremo e matar) os não humanos. Ou seja, alguém que escolhe não assassinar os não humanos é visto como bondoso desde que não exija que os outros também passem a fazer o mesmo. Se isso acontece, ele já é visto como tirano. Essa mentalidade predomina também em muitas pessoas que são veganas (ou seja, não consomem produtos oriundos da exploração animal). Defendem que, assim como elas têm direito moral de serem veganas, outros humanos têm o direito moral de causar sofrimento e morte aos não humanos. Estão a defender o direito dos veganos, mas obviamente negam, direitos para os animais não humanos.

Os que estão acima e os que estão abaixo da natureza

Cachorro abandonado

Com relação a prestar socorro aos animais não humanos, alguém que o faz é visto negativamente. Por exemplo, alguém que socorre animais abandonados, ou dedica seu tempo a prevenir que novos abandonos aconteçam, ou, alguém que luta em defesa dos animais não humanos em geral, é visto como invertendo a ordem de prioridade: “por que não vão cuidar de criancinhas?”, perguntam. A maioria pensa assim não por acreditar que os seres humanos estão em uma situação pior do que os animais não humanos (aliás, é difícil imaginar como alguém poderia estar pior, por exemplo, que os animais que vivem nas granjas industriais ou que nascem apenas para morrer de inanição ou serem devorados vivos lentamente na natureza), mas sim, simplesmente por que uns são humanos e outros são não humanos, independentemente do quão boa ou ruim seja situação em que se encontrem.

Com relação a socorrer os animais não humanos vítimas dos processos naturais, a reprovação é ainda mais intensa: “como alguém pode se achar deus a ponto de contrariar a natureza?”. Mas, quando as vítimas são os seres humanos, a coisa muda de figura. A maioria acredita que existe uma obrigação de socorrer humanos que estão a morrer de inanição, tem um câncer (ou qualquer outra doença natural), está a ser comido por parasitas, a ser predado por outro animal, morrer queimado ou congelado. Quando as vítimas são humanas, ninguém acredita que está a “arrogantemente brincar de deus” pelo fato de contrariar a natureza e socorrer tais vítimas (fazemos isso conosco mesmo o tempo todo, por exemplo, quando nos medicamos contra alguma doença).

3. A grande questão

Dois pesos, duas medidas…

Dois pesos, duas medidas

A grande questão que nos propomos a investigar neste blog é:

Na visão moral predominante, acredita-se que há justificativa para se desfavorecer (seja não considerar de maneira alguma, seja considerar em menor grau do que consideraria se fossem humanos) os interesses dos animais não humanos. Se alguém resolve considerar os interesses dos animais não humanos, isso é visto como moralmente opcional (algo que é permitido mas não requerido), e não como uma obrigação. Acontece que, quando exatamente os mesmos tipos de prejuízo (sofrer intensamente e morrer, por exemplo) acontecem aos seres humanos, causá-los (seja ativamente, seja por não socorrer) é visto como um dos crimes mais hediondos possíveis. Pior ainda se fosse feito a bilhões de indivíduos. O holocausto promovido pelos nazistas é lembrado até hoje como um dos crimes mais terríveis de toda a história. Mesmo sendo realmente uma prática extremamente terrível, contudo, em termos do número de mortes, apenas se contarmos o que é computado das granjas industriais (o que não inclui os números da pesca, que, como vimos, é a área onde o maior número de animais mortos aparece), temos, apenas nos últimos vinte anos, o equivalente a cinco mil holocaustos .

Especismo

Galinhas na indústria de ovos

Alguns filósofos mantém que a visão moral predominante com relação aos animais não humanos é especista. O especismo é um termo para fazer uma analogia com o racismo. Segundo tais autores, nossas atitudes perante aos animais não humanos seriam como o racismo ou o sexismo (e, portanto, tão indefensáveis quanto): alguém, que não pertence a um determinado grupo, recebe uma consideração menor do que deveria receber – ou seja, uma consideração injusta (isto é, acontece uma discriminação).

A grande questão é, então: o que poderia justificar tal visão moral perante aos animais não humanos? Existe algum argumento que prove que está correto tratar de maneira tão diferenciada prejuízos que são semelhantes, devido a ter mudado a espécie da vítima? Ou, será que não existe um bom argumento a favor da moralidade predominante quanto aos animais não humanos e deveríamos, então, mudar radicalmente nosso comportamento com relação às nossas decisões que atingem os animais não humanos?Deveríamos manter a visão moral atual com relação aos animais não humanos?

Deveríamos considerar em algum grau o que acontece aos animais não humanos, mas não tanto quanto como seria se fossem humanos no lugar? Ou deveríamos considerar prejuízos e benefícios similares como oferecendo iguais razões para agir, independentemente da espécie do portador do interesse? Se temos obrigações perante aos animais não humanos, essas obrigações limitam-se a danos oriundos da exploração? Ou, pelo contrário, assim como acontece quando as vítimas são humanas, também temos obrigações de socorrê-los quando são vítimas de danos naturais?

Nos verbetes deste blog, serão analisados os argumentos favoráveis e contrários a cada uma dessas posições. 

Notas:

(1) Ver, por exemplo, os dados da FAO, disponíveis em FAO – Food and Agriculture Organization of the United Nations. Global Capture Production 1950-2008. Fisheries and Aquaculture Department, Global Statistical Collections, 2010. http://www.fao.org/fishery/statistics/global-capture-production/query/en; Global Capture Production 1950-2008. Fisheries and Aquaculture Department, Global Statistical Collections, 2010, http://www.fao.org/fishery/statistics/global-capture-production/query/.

(2) Estatísticas disponíveis em MOOD, ALISON e BROOKE, Phil. Estimating the Number of Fish Caught in Global Fishing Each Year, Fishcount.org.uk, 2010. http://www.fishcount.org.uk/published/std/fishcountstudy.pdf.

(3) DAWRST, Alan. How Many Animals are There? Essays on Reducing Suffering, 2009, http://www.utilitarian-essays.com/number-of-wild-animals.html.

(4) DAWKINS, Richard, River Out of Eden: A Darwinian View of Life, New York: Harper Collins Publishers, 1996; DAWRST, Alan, The Predominance of Wild-Animal Suffering over Happiness: An Open Problem. Essays on Reducing Suffering, 2009, http://www.utilitarian-essays.com/wild-animals.pdf; HORTA, O. La cuestión del mal natural: bases evolutivas de la prevalencia del desvalor. Agora: Papeles de Filosofia, v. 30, n. 2, pp. 57-75, 2011.MILL John S., Nature, The Utility of Religion and Theism. London: Rationalist Press, 1904, pp. 7-33.

(5) NG, Yew-Kwang, Towards Welfare Biology: Evolutionary Economics of Animal Consciousness and Suffering. Biology and Philosophy, 10 (3), 1995, pp. 255-285.

(6) RACHELS, Stuart. Vegetarianism. In: BEAUCHAMP, T.; FREY, R. The Oxford Handbook of Ethics and Animals [a ser publicado]. Disponível em http://www.jamesrachels.org/stuart/veg.pdf

Fonte: blog Especismo Não!  


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Olhar Animal – www.olharanimal.org


 

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