Cão escaldado

Por Dr. phil. Sônia T. Felipe 

No dia 7 de setembro a ANDA voltou a noticiar o caso do cão que foi lesado por água fervendo, jogada por uma mulher que o queria bem longe do seu portão. As lesões foram de terceiro grau. O dono de um pet shop socorreu o animal. Nessa segunda parte da notícia, somos informados de que a mulher agora quer adotar o animal e está arrependida do que fez. Compreendo o sentimento dela. Isso não é raro. A gente comete uma falta grave, lesa outra pessoa, humana ou não-humana, na hora não se dá conta, depois cai a ficha e a vergonha de ter se envolvido naquela cena é tanta que a única saída é arrepender-se do ato. A química cerebral do arrependimento é terapêutica para o sujeito que comete uma falta e fere outro. É terapêutica para o sujeito, mas não afeta quem sofreu a agressão.

Uma coisa é compreender sua vergonha e arrependimento. Outra é concordar com ela que adotar este animal lesado por ela é a forma de compensá-lo pelas lesões sofridas. Se concordássemos em apoiar seu intento, estaríamos considerando que a lesão causada ao animal é de ordem meramente epitelial. Esta, a epitelial, pode ser curada com medicamentos (babosa em fatias sobre as lesões as cicatrizem rapidamente, no caso de queimaduras).

Em se tratando de uma pessoa senciente da espécie canina, temos que considerar os danos irreparáveis causados à mente do animal. Sua memória não o deixará nunca mais em paz, assim que ver uma pessoa humana com uma vasilha nas mãos. Isso vale para a visão que o animal teria dessa senhora no dia a dia, e vale para o que ele verá no dia a dia da pessoa que o adotar. Qualquer coisa que se pareça com vasilha de água fervente nas mãos fará com que ele entre em pânico, porque ele não pode distinguir o propósito secreto de quem segurar a vasilha nas mãos diante dele daqui por diante.

A lesão, repito, não é epitelial. É mental. Todas as pessoas que sofreram algum tipo de violência intencional sofrem as sequelas pós-traumáticas das quais raramente se recuperam. As pessoas caninas não são diferentes. Todos os animais são conscientes do que fazemos a eles e memorizam as informações dos nossos gestos para melhor poderem se proteger deles e se anteciparem fazendo o que for possível para que não aconteça outra vez o ato lesivo do qual uma vez foram vítimas. É a isso, também, que se chama consciência, uma capacidade mental presente em todos os animais.

Entregar o animal a essa senhora seria como entregar a guarda de uma criança ao pai que a estuprou! De arrepiar. Até acredito que ela esteja arrependida, especialmente se um advogado a alertou para os desdobramentos que a aguardam nesse processo. Mete medo o que ela vai ter que responder. Mas o que importa agora é olhar o gesto dela na perspectiva da sensibilidade do cão indefeso.

O que interessa proteger é a memória que o animal tem do que sofreu das mãos dela. Esse cão jamais viveria em paz com ela. Imagina cada vez que ele a visse com uma caneca nas mãos! Um terror diário! Não importa o sentimento bom que hoje parece estar nela em relação ao animal. A única coisa que ora importa é o sentimento do cão em relação ao que ela fez a ele. Explica para o cão que ela se arrependeu, explica! E, depois de bem explicado, pergunta ao cão se quer ficar na intimidade do cercado dessa casa em frente à qual ele buscava proteção e ganhou água fervendo.

O cão deve ir para uma casa que ele possa sentir como sua, onde não se sinta como intruso, invasor, persona non grata. É o cão que tem que se sentir dono da pessoa que o protege, e não a pessoa sentir-se dona dele. A pessoa é que tem que compor a matilha que o cão precisa para atender ao seu espírito específico e não o cão compor o baú de quinquilharias (ainda que chiques) chamada “propriedade” de quem o protege.

A linguagem que empregamos para nos referirmos aos animais eleitos para estima é concebida a partir do valor instrumental que os animais acabam por ter de corresponder: estima, companhia, guarda, uso, extração e consumo. Nesse sentido, chamamos de dona ou dono à pessoa que decide reter um animal em sua companhia, tratando-o como um objeto de sua propriedade.

Na ética abolicionista o que defendemos é que ao animal seja dado o estatuto de sujeito de sua vida. Sendo um sujeito, jamais seus interesses devem ser tratados como se ele fosse um objeto. Um carro é levado para a oficina quando a agenda permite, tanto a de serviço quanto a financeira. Quando o carro demora para receber um trato e pifa, é guinchado para a oficina.

Animais não são objetos que podem ser manejados de acordo com a disposição da pessoa que os retém em sua companhia. Animais são sujeitos de sua vida e precisam apenas que sua vida não seja manejada pelo animal humano que o aprisiona em seu território doméstico. Quando lidamos com um animal abandonado, lesado pela violência humana, precisamos ter em mente que estamos lidando com uma pessoa.

Ajudar uma pessoa humana implica em conhecer a condição específica na qual ela está vulnerável e oferecer meios para que ela se recupere de sua vulnerabilidade. Adotar uma pessoa não-humana não é diferente. Quem adota um animal precisa conhecer os pontos vulneráveis desse animal, observar sua interação, reconhecer suas preferências, atender às suas necessidades básicas e dar a ele a liberdade máxima para que possa buscar seu próprio bem a seu próprio modo.

Quem adota um animal lesado pela violência de um “dono” maldoso, ou de um “não-dono” igualmente maldoso, precisa saber o repertório armazenado na memória auditiva, olfativa, gustativa, tátil e cinestésica desse animal. Precisa ter cuidado e gentileza para não encenar gestos que atemorizem o animal. Uma família de alcoólatras não deve adotar uma criança que tenha sofrido a violência doméstica de progenitores alcoolizados. A simples visão de uma garrafa de bebida na geladeira, sobre a mesa ou na mão de alguém evocará na criança a memória de tudo o que sofreu por conta do alcoolismo de seus agressores.

Obviamente, passado algum tempo, mais longo ou mais curto, a depender da memória desse cão, ele poderá voltar a confiar nas mãos que segurem uma vasilha qualquer. Precisa cuidar de não aparecer repentinamente na frente dele com uma vasilha nas mãos. Precisa deixar ele cheirar a vasilha, distinguir seu conteúdo. Precisa desarmar a mente do animal, para que ele não entre em pânico cada vez. Isso o estressaria, pois a descarga adrenal será inevitável nesse cérebro, como o é em humanos que foram sequestrados e assaltados. O trauma é para sempre. O que pode ser minimizado é a forma de lidar com a descarga. Mas como faríamos isso com o cão? Humanos buscam terapia para aprender a lidar com suas marcas em chagas ou mesmo com as já cicatrizadas. Mas do alto da nossa arrogância intelectual, não podemos estar seguros de saber como amenizar o fantasma que ora habita a mente do animal.

Não somos “donos” de vida alguma. Nem da nossa. 

Fonte: ANDA


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