Liberar caça foi um ‘tiro pela culatra’: controle dos javalis desafia o Brasil

Liberar caça foi um ‘tiro pela culatra’: controle dos javalis desafia o Brasil
Foto: Reprodução

Ao encontrar um rastro de javali em uma propriedade rural no interior de Santa Catarina, os caçadores do Limpa Querência soltam os cachorros para rastrear o animal, considerado uma das 100 piores espécies exóticas invasoras do mundo. Quando os cães conseguem encurralar alguns indivíduos do bando de porcos selvagens, formado geralmente por um macho, algumas fêmeas e vários filhotes, os homens os abatem a tiros. Em 2023, o grupo de caça eliminou 237 indivíduos.

Os dados mais recentes do Ibama mostram que 333 mil javalis foram abatidos entre abril de 2019 e agosto de 2021. Só em 2022, o número saltou para 465 mil. Após suspender novas autorizações para o controle da espécie em julho passado, para adequar as regras ao novo decreto sobre armas, as análises voltaram a ser realizadas no fim de dezembro.

Animal nativo da Europa e da Ásia, o javali tem causado estragos na fauna e na flora brasileira e prejuízos em propriedades rurais e pode se tornar um problema de saúde pública. De acordo com estudo recente da UFPR (Universidade Federal do Paraná), a liberação da caça ao animal, em 2013, foi um verdadeiro tiro que saiu pela culatra: está contribuindo para disseminar ainda mais o animal pelo território nacional. Os últimos dados disponíveis mostram que o animal foi registrado em 2.010 municípios em 2022 —em 2016, eram 489.

Javalis se espalham pela ação humana

A pesquisa da UFPR, publicada no periódico One Health, se baseou nos registros da existência do animal em todas as regiões e biomas brasileiros. “O javali está indo para onde tem caça, ou seja, sua disseminação é feita de forma criminosa. Não tenho dúvida, porque ele está ‘saltando’ pedaços de terra para aparecer só onde tem mais caça ou perto das fazendas de caça”, afirma o médico veterinário Alexader Biondo, um dos autores do estudo.

No relatório final do chamado Plano Javali, do Ibama, fica claro que as autoridades ambientais estão cientes do problema. O texto, de fevereiro deste ano, coloca entre os principais desafios o controle das “vias de introdução e dispersão”, citando “as criações clandestinas” e “a soltura para caça”.

Controlador ou caçador

André Corrêa dos Santos, de 39 anos, produtor rural de Capão Alto (SC), já sentiu os impactos dos javalis em sua propriedade. Em outubro de 2023, os animais comeram o adubo usado na plantação.

Corrêa dos Santos integra a equipe Limpa Querência, com sede em Correia Pinto (SC), formada por 12 caçadores e 12 cachorros da raça foxhound americano. Quase todos os sábados, eles vão até uma propriedade para caçar javalis.

O caçador considera sua atividade como lazer. “A gente pode ir para o mato e não abater nada, mas volta para casa com energia recarregada. Claro que, quando tem um abate, é melhor. E também estamos ali para preservar a natureza. A maioria dos caçadores é produtor também e a gente sabe o que se passa no campo ou na lavoura”.

Risco sanitário

Registros indicam que os javalis foram trazidos ao Brasil no início do século 20, mas em pequena quantidade. A partir dos anos 1980, houve uma tentativa de promover criações comerciais de olho no mercado gastronômico de carnes exóticas. Não funcionou. O manejo é difícil, porque apesar de ser da mesma espécie do porco doméstico, se trata de um animal bastante agressivo.

Alguns ex-criadores decidiram soltar os bichos na natureza. Ao cruzar com o porco doméstico, ele deu origem a um híbrido geralmente chamado de javaporco. “São animais rústicos e violentos, têm uma hierarquia e andam em bandos. E, no Brasil, ao contrário da Europa, ele não tem predador natural”, explica Biondo.

Onívoro, o bicho estraga a mata nativa e ataca ninhadas de animais. O javali chega a pesar 150 quilos, enquanto um cateto, porco-do-mato brasileiro, fica entre 15 e 30 quilos, e a queixada, entre 20 e 40.

Ameaça à saúde pública

De acordo com pesquisas recentes realizadas pelos professores da UFPR, o javali também representa um problema para a saúde pública. Isto porque ele pode estar ajudando a disseminar zoonoses, ou seja, doenças que podem ser transmitidas entre humanos e animais.

“Capturamos 20 javalis dentro de um parque [de conservação ambiental] e oito deram positivo para raiva”, exemplifica Biondo. Os pesquisadores relatam dez doenças que o animal “acaba servindo de reservatório” com potencial para transmitir.

Desde 2012, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) apoia a vigilância oficial e realiza o monitoramento sanitário do javali, em colaboração com o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). O material analisado é fornecido por controladores, que passam por capacitação e voluntariamente colhem o sangue após o abate. Corrêa dos Santos é um deles.

Na suinocultura, a maior preocupação é a possibilidade de ocorrência da peste suína clássica (livre na maior parte do território) e da peste suína africana (erradicada), que têm alto impacto na produção e no mercado.

A Embrapa também pesquisa zoonoses. Foram detectados, por exemplo, anticorpos contra os agentes que causam leptospirose, toxoplasmose, triquinelose e hepatite, dentre outras.

Unidades de conservação

Um dos lugares onde pode ser observado o impacto do javali no meio ambiente é no Parque Nacional de São Joaquim, na serra catarinense.

“O que mais me impressiona é chegar nas áreas de campo e ver o estrago que os javalis estão causando. Parece que passou um trator e que alguém vai plantar alguma coisa”, comenta Michele de Sá Dechoum, coordenadora do Laboratório de Ecologia de Invasões Biológicas, Manejo e Conservação (Leimac) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Os acadêmicos da UFPR defendem que o controle seja sistemático — e não atrelando a ideia a um lazer armamentista. “A caça é perigosa, isto já demonstramos”, ressalta Biondo. Além de não controlar a população do suíno, caçadores muitas vezes alvejam animais como veados, capivaras, antas, entre outros.

Biondo defende que esse controle seja feito por empresas especializadas, com o uso de armadilhas. “O javali precisa ser retirado de nossa fauna, porque não há nada que compete com ele”, adverte. “Mas não é a caça de final de semana que vai resolver”.

Fonte: Portal Grande Ponto


Nota do Olhar Animal: São muitos crimes reunidos numa única atividade. Vão desde os maus-tratos a cães e javalis até o abate de animais silvestres. A caça só serve aos interesses da indústria de armas – aumentando a violência e insegurança na sociedade, aos empresários do turismo de caça e aos psicopatas que praticam caçam “esportiva” e se comprazem com o sofrimento animal. Qual a alternativa à caça? Não adianta muito especular sobre isso porque as mentes “brilhantes” do Ibama criaram normas que impedem qualquer outra medida que não seja o abate dos javalis e cujo efeito é esse descrito na matéria. Sim, a população de javalis precisa ser controlada, pelo bem deles próprios inclusive, mas com medidas éticas e eficazes.

Controle populacional de javalis

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