Peter Singer: liberdade religiosa ou bem-estar animal

Peter Singer: liberdade religiosa ou bem-estar animal
Lotes de gado selecionados para venda, no Mercado Hacienda de Cañuelas, província de Buenos Aires. EFE/ Juan Ignácio Roncoroni

No mês passado, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decidiu num caso, “O Comitê Executivo dos Muçulmanos da Bélgica e Outros v. Bélgica”, que exigia encontrar um equilíbrio entre a liberdade religiosa e o bem-estar animal. As províncias belgas da Flandres e da Valónia aprovaram leis que exigem que todos os animais abatidos para consumo humano sejam atordoados antes de serem mortos. As comunidades muçulmana e judaica tentaram anular a legislação, alegando que ela violava a sua liberdade de abater animais da forma prescrita pelas suas leis alimentares.

O Comissário do Ambiente, Oceanos e Pescas da União Europeia (UE), Virginijus Sinkevicius (c-i), tira esta quinta-feira uma fotografia de um animal nas Ilhas Galápagos (Equador). EFE/Fernando Gimeno
O Comissário do Ambiente, Oceanos e Pescas da União Europeia (UE), Virginijus Sinkevicius (c-i), tira esta quinta-feira uma fotografia de um animal nas Ilhas Galápagos (Equador). EFE/Fernando Gimeno

Os pedidos anteriores ao Tribunal Constitucional Belga e ao Tribunal de Justiça da União Europeia não tiveram sucesso, pelo que os demandantes recorreram ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), um tribunal do Conselho da Europa ao qual pertencem todos os países europeus, exceto Bielorrússia e Rússia. Todos os membros do Conselho da Europa devem ratificar a Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

De acordo com o artigo 9.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião… e de manifestar, em público ou privado, a sua religião ou crença através do culto, do ensino, da prática e da observância. Este direito está condicionado, no entanto, por uma segunda cláusula: “A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas às limitações prescritas por lei e que sejam necessárias numa sociedade democrática, no interesse da segurança pública, para a proteção de ordem, saúde ou moral públicas ou para a proteção dos direitos e liberdades de terceiros.”

Se o bem-estar animal se enquadrar em qualquer um destes títulos, o da “moral pública” parece ser a mais provável. Os demandantes argumentaram, contudo, que a referência da Convenção à proteção da “moral pública” deveria ser entendida como dirigida exclusivamente à proteção da dignidade humana entre os indivíduos. O TEDH nunca antes tinha lidado com um caso que lhe obrigasse a pesar o direito à liberdade religiosa com o bem-estar dos animais, por isso não era fácil prever como iria decidir.

A decisão do TEDH, proferida em 13 de fevereiro, determinou que as leis que exigem o atordoamento prévio restringem a liberdade religiosa dos requerentes. No entanto, também concluiu que a proteção do bem-estar animal faz parte do objetivo legítimo do governo de proteger a moral pública. A noção de “moralidade”, disse o tribunal, está evoluindo e o que é considerado aceitável num momento pode já não o ser mais tarde.

A opinião do TEDH é que deveria atribuir um peso significativo às decisões tomadas pelos órgãos legislativos, especialmente quando estes promulgam leis por grandes maiorias, e em ambas as províncias, os órgãos legislativos votaram quase unanimemente para apoiar a legislação em questão. O tribunal observou também que o Tribunal Constitucional Belga e o Tribunal de Justiça da União Europeia tinham considerado, nos seus acórdãos anteriores que apoiavam a legislação, que o bem-estar animal, como valor ético, tem uma importância crescente nas sociedades democráticas contemporâneas e que isto deveria ser levado em consideração ao avaliar as restrições sobre como as crenças religiosas se manifestam em ações que afetam o bem-estar animal.

O TEDH não ficou convencido pelo argumento dos demandantes de que a Convenção limita a “moral pública” à proteção da dignidade humana. O tribunal tomou nota de casos anteriores em que o tribunal prestou atenção à proteção do bem-estar dos animais e também do ambiente. Consequentemente, o TEDH declarou: “a Convenção não pode ser interpretada no sentido de que promove a defesa absoluta dos direitos e liberdades que consagra sem ter em conta o sofrimento dos animais”.

A belga Wendy Adriaens, fundadora da De Passiehoeve, uma fazenda de resgate de animais onde os animais apoiam pessoas com autismo, depressão, ansiedade ou problemas com drogas, oferece um abraço a Blondie, uma avestruz fêmea de 6 anos na fazenda Passiehoeve, em Kalmthout, Bélgica Março 8, 2024. REUTERS/Yves Herman
A belga Wendy Adriaens, fundadora da De Passiehoeve, uma fazenda de resgate de animais onde os animais apoiam pessoas com autismo, depressão, ansiedade ou problemas com drogas, oferece um abraço a Blondie, uma avestruz fêmea de 6 anos na fazenda Passiehoeve, em Kalmthout, Bélgica Março 8, 2024. REUTERS/Yves Herman

Para julgar que as leis não constituíam uma restrição injustificada à liberdade religiosa, o tribunal ainda precisava considerar se a restrição era proporcional ao objetivo. Ele observou que a legislação se baseava no “consenso científico de que o atordoamento prévio era o meio ideal de reduzir o sofrimento animal no momento do abate”. Os legisladores, embora exigindo a utilização deste método ótimo dentro da sua jurisdição, tiveram o cuidado de formular as suas leis de uma forma que minimizasse a restrição da liberdade religiosa e não tentaram proibir a venda de carne importada de fora das províncias, mesmo quando os animais foram sacrificados de formas proibidas nas províncias.

Neste aspecto, os legisladores podem ter sido excessivamente cautelosos. Duvido que seja uma violação da liberdade religiosa proibir a venda de carne de animais cujas gargantas são cortadas enquanto estão plenamente conscientes. As crenças religiosas judaicas, pelo que entendi, não exigem que os judeus comam carne. Então porque é que é uma restrição à liberdade religiosa dizer: se é nisso que você acredita, então não coma carne? (Digo isso como alguém que não come carne há mais de 50 anos.)

Vacas leiteiras vão trabalhar no Mercado Agrícola de Cañuelas.
Vacas leiteiras vão trabalhar no Mercado Agrícola de Cañuelas.

O caso é menos claro para os muçulmanos, porque alguns acreditam que devem comer carne no Eid ad-Adha, ou Festa do Sacrifício. Se essa proposta for aceita, os legisladores poderão aprovar uma lei que permita que a carne de animais abatidos sem atordoamento prévio seja vendida durante a semana anterior ao Eid. As violações da liberdade religiosa seriam assim mantidas a um mínimo absoluto, enquanto a proteção dos animais, tanto dentro como fora da jurisdição do legislador, seria maximizada.

Por Peter Singer / Tradução de  Alice Wehrle Gomide

Fonte: Clarin


Nota do Olhar Animal: O sacrifício ritualístico de animais ocorre em diversas religiões. E de todas elas deve ser banido, inclusive os sacrifícios ocorridos nas celebrações cristãs, como os que acontecem no Natal e Páscoa. O que é justo é que animal algum tenha o destino que lhe é dado em práticas religiosas, sem exceção. Porém, quem explora os animais para rituais se esconde atrás de argumentos como o da isonomia em relação ao tratamento dispensado a outros grupos religiosos. Escondem-se também atrás da “liberdade religiosa”, preceito constitucional que jamais se aplicaria se as vítimas fossem humanas.

Infelizmente, parte do ativismo animalista “comprou” esse discurso, mas não o sustenta quando o tema são outras áreas da exploração animal. Por exemplo, ativistas jamais se posicionaram contra a aprovação de leis estaduais de proibição ao uso de animais em circos, ainda que em outros estados a atividade continuasse liberada. Jamais alegaram algum tipo de discriminação contra os povos de Alagoas, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraíba e Pernambuco, pelo fato de nestes estados terem sido aprovadas leis que proíbem animais em circo, mesmo que baianos, amazonenses, goianos, potiguares, sul-matogrossenses e outros não vivenciem a mesma restrição. Por conta desta falta de simultaneidade, a proibição ao uso de animais em circos não deveria ter ocorrido em 12 estados? Esta abrangência parcial e circunstancial representa alguma forma de discriminação? Fôssemos considerar este raciocínio, não seria justo querer que uma outra pessoa se torne vegana sendo que a maioria dos humanos não o é e não se tornará vegana simultaneamente. O ativismo sustentar que, se a proibição não alcançar todas as religiões, a interrupção NÃO deve ocorrer, é tudo que quem explora quer ouvir de quem, a princípio, deveria defender os interesses dos animais. Quando estes protetores tratam de rituais, tiram o foco dos interesses dos animais e passam o foco para os interesses humanos. Interesses egoístas, diga-se de passagem, pois os rituais se destinam à obtenção de benesses para quem os pratica, às custas do sofrimento e morte dos bichos. Por isso, é lamentável ver ativistas defendendo que o fim das mortes em rituais de religiões de matriz africana só deve ocorrer quando acabarem nas demais religiões. Desconhecemos que estes ativistas tenham lançado alguma campanha ampla pelo fim do uso de animais em rituais para todas as religiões nas vezes em que o tema veio à tona (aprovação de lei sobre o assunto no RS ou por ocasião do julgamento da questão pelo STF, por exemplo). Estes ativistas se restringem a proteger os rituais destas religiões e se omitem sobre a defesa de suas vítimas. Não querem ficar “mal na fita” e serem acusados de racismo, etnocentrismo e outros “ismos”. Assim, optam por um “ismo” socialmente mais aceito: o especismo. E, defensivamente, imputam os outros “ismos” a quem se mantêm firme na defesa incondicional dos animais. Não há dúvidas de que esta é uma posição vergonhosamente especista e que colabora para o prolongamento do sofrimento e a morte impostos aos animais.

Sobre a questão do “atordoamento” ser uma medida suficiente para garantir o bem estar dos bichos, é óbvio que isso não atende aos interesses fundamentais dos animais. O sofrimento imposto a eles é terrível e inaceitável, mas é apenas um AGRAVANTE em relação ao dano maior que é o ABATE. O sofrimento causados aos animais nos rituais ou nas linhas de produção de carne não é menos repulsivo e imoral do que a violação do principal interesse dos animais, que é o interesse em viver. A moral pública pode variar com o tempo, mas os interesses básicos dos animais não variam: eles querem viver e não querem sofrer. Portanto, não é justa a “liberdade religiosa” que atenta contra os estes interesses básicos dos seres sencientes, tão pouco é correto a ideia de “bem-estar animal” que apenas eterniza a exploração desses seres pelos humanos, caso do “atordoamento”.

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