Venda ilegal de artesanato indígena com partes de animais tem objetos que chegam a R$ 100 mil

Venda ilegal de artesanato indígena com partes de animais tem objetos que chegam a R$ 100 mil
Cocares vendidos por comerciantes na internet. RENCTAS/REPRODUÇÃO

Um dossiê com a análise de mais de 500 anúncios na internet revela um mercado lucrativo, mas cruel: o comércio ilegal de artesanato indígena feito de partes de animais silvestres. Penas de aves ameaçadas de extinção, dentes de macacos, pedaços de couro de onças e garras de gaviões são utilizados na confecção de cocares, brincos, colares, tiaras e outros acessórios e objetos de decoração que são vendidos por até R$ 100 mil no exterior. A legislação brasileira permite apenas a povos indígenas usarem animais para se vestir ou para produzir peças de uso pessoal. No entanto, a comercialização desses objetos é proibida e enquadrada nas leis de crimes ambientais.

Ao todo, são mais de cem horas de gravação de produtores e comerciantes de artesanato indígenas, que foram monitorados durante seis meses pela Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas). O registro foi feito para identificar o perfil dos comerciantes, os preços praticados e as espécies mais visadas.

“O que mais nos chamou atenção foi ter a dimensão do tamanho desse problema. Sabíamos que existia, mas não tínhamos a dimensão. Encontramos comerciantes que tratam de cargas de cocares, com 30, 40 peças”, afirma o coordenador do estudo, Dener Giovanini.

Nesse mercado, os animais mais visados são as aves, e as mais utilizadas são as araras-vermelha, azul e canindé; além de tucanos, gaviões das mais diversas espécies e papagaios. Outros animais também são valiosos nesse mercado, como a onça, que, geralmente, tem o couro retirado para ser usado na produção de enfeites.

Tráfico e exploração

Comerciante negocia garras de gavião no WhatsApp. RENCTAS/REPRODUÇÃO
Comerciante negocia garras de gavião no WhatsApp. RENCTAS/REPRODUÇÃO

Segundo o dossiê, o comércio ilegal de artesanato indígena segue basicamente dois caminhos: o tráfico de animais e a exploração de comunidades tradicionais, que chegam a vender os cocares por cerca de R$ 50. Uma vez nas mãos dos comerciantes e atravessadores, as peças ganham preços exorbitantes. “Como são peças únicas, esses comerciantes elevam o preço às alturas e transformam um objeto cultural em um símbolo de status e excentricidade”, afirma Giovanini.

Em um dos anúncios feitos na internet, um vendedor destaca a venda de um quadro com cocar indígena feito de penas de arara-azul, uma espécie ameaçada de extinção, por R$ 7.200. Em outro anúncio, um cocar feito de cerca de 300 penas de papagaios e araras é vendido por R$ 16 mil no Brasil, mas pode chegar a R$ 100 mil na Europa.

Veja na galeria abaixo artesanato indígena negociado ilegalmente na internet

A quantidade de animais mortos para a produção do artesanato em larga escala também chama atenção.

Outra coisa que nos chamou atenção foi o comércio de cocares por uma pessoa do Rio de Janeiro. Ela afirmou que precisava de 40 papagaios para fazer cada cocar e que tinha 12 deles encomendados. Cada cocar custava R$ 16 mil. A maioria dos clientes dela era de escritórios de arquitetura de São Paulo, do Paraná e do Rio de Janeiro.
DENER GIOVANINI, PRESIDENTE DA REDE NACIONAL DE COMBATE AO TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES

Ele ainda adverte que os indígenas, muitas vezes, são vítimas dos atravessadores, que se utilizam da vulnerabilidade das comunidades para negociar as peças por valores baixos.

Há um lado da exploração social dos indígenas que é dramático, de gente nas aldeias que troca animais por comida. É óbvio que os comerciantes querem levar [o material] para São Paulo e para a Europa e ganham muito dinheiro com isso. Só quem não ganha são os indígenas e os animais.
DENER GIOVANINI, PRESIDENTE DA REDE NACIONAL DE COMBATE AO TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES

Ibama diz que atua para ‘inibir o comércio’

Segundo o Ibama, desde 2007 o órgão atua para “inibir o comércio de mercadorias produzidas com partes de animais por meio da operação nacional intitulada Moda Triste”. No entanto, o Ibama não informou o número de material apreendido nem o valor das multas aplicadas.

“Atualmente, o Ibama realiza ações pontuais, por meio de denúncias e investigação, com o objetivo de reduzir esse tipo de comércio e conscientizar sobre a importância de comerciantes não venderem esses produtos”, afirmou o órgão.

O que diz a lei

A legislação brasileira proíbe a compra e a venda, o transporte, a posse e a aquisição de cocares, flechas, colares, pulseiras, bolsas, brincos, cintos ou qualquer outro tipo de artesanato confeccionado com dentes, penas, garras ou demais partes da fauna silvestre nativa. Enviar essas peças para o exterior, sem autorização, também é proibido.

É permitido somente aos indígenas, pela sua cultura, o uso de artefatos com fragmentos de animais, mas é proibida a comercialização. Também é proibido o transporte ou a guarda de qualquer artefato que possua partes de animais sem a devida licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes.

A legislação só exclui [a responsabilidade dos] povos originários quando eles fazem um cocar, por exemplo, para a sua subsistência, para sua cultura. A partir do momento em que passa para uma comercialização, até mesmo esses povos têm de obedecer a legislação ambiental.
ALESSANDRO AZZONI, ADVOGADO ESPECIALISTA EM DIREITO AMBIENTAL

Multa e prisão

De acordo com a legislação brasileira, o comércio, a guarda, o transporte e o depósito de animais silvestres ou de parte deles podem render multa de R$ 500 a R$ 5.000 e prisão, com pena de seis meses a um ano.

Peças apreendidas no Memorial dos Povos Indígenas. DIVULGAÇÃO/AGÊNCIA BRASÍLIA
Peças apreendidas no Memorial dos Povos Indígenas. DIVULGAÇÃO/AGÊNCIA BRASÍLIA

Em 2021, a Polícia Federal entregou ao Memorial dos Povos Indígenas, de Brasília, um conjunto de quase 9.000 objetos indígenas que estavam armazenados em um depósito da corporação desde maio de 2004, quando a PF apreendeu as peças durante a Operação Pindorama, que apurou a suspeita de contrabando internacional de artesanato indígena.

Entre as peças, há exemplares de arcos, flechas, ornamentos, cocares, entre outros objetos — alguns, de grande valor artístico, cultural, histórico e sociológico, conforme mostrou, na época, a Subsecretaria do Patrimônio Cultural do Distrito Federal. Atualmente, uma parte dos objetos está exposta e outra ainda está em fase de mapeamento para tratamento de restauro e higienização.

“Primeiramente, é preciso separar o comércio do tráfico de bens culturais. Este último acaba por causar danos financeiros, simbólicos e até ambientais às comunidades indígenas. Em segundo lugar, cada coletivo indígena e cada artista indígena é único e lida com essas questões de maneira diferente, sendo parte de nossa responsabilidade respeitar essas diferenças”, informou a Secretaria de Cultura do DF, responsável por manter o Memorial dos Povos Indígenas.

O R7 procurou o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU-BR) para comentar o assunto, mas não obteve retorno. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) também foi acionada, mas não respondeu aos questionamentos da reportagem.

Por Hellen Leite

Fonte: R7

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