Polêmica: projeto que quer impedir circulação de carroças divide opiniões em Feira de Santana, BA

Polêmica: projeto que quer impedir circulação de carroças divide opiniões em Feira de Santana, BA
Carroças de tração animal viraram polêmica em Feira de Santana. Crédito: Abnner Kaique - Divulgação

A cidade de Feira de Santana, no interior da Bahia, está dividida com uma polêmica: a proibição do tráfego de carroças. No fim do mês passado, a Câmara Municipal de Feira de Santana realizou uma audiência pública com o objetivo de discutir a proibição. A iniciativa ampliou o debate sobre o Projeto de Lei em tramitação que busca estabelecer ao longo dos próximos quatro anos o Programa de Redução Gradativa do Número de Veículos de Tração Animal.

A proposta foi apresentada inicialmente em 2021 pelo vereador licenciado e atual secretário municipal de agricultura Pedro Américo. O principal argumento apontado pelo projeto é o combate aos maus-tratos contra os animais. O tema tem inspirado discussões e controvérsias desde então.

De acordo com o texto, o tráfego das carroças seria proibido apenas nas áreas urbanas da cidade. O gestor da pasta explica que o programa não inclui a zona rural pois no campo existem locais adequados para dar conforto aos animais, como espaços para descanso e pastagens.

“O que a gente vê na maioria das vezes são animais no centro da cidade ou até nos lugares periféricos comendo lixo pra poder se alimentar. A partir desses quatro anos a gente veda definitivamente o uso de veículos de tração animal no centro urbano de Feira de Santana, independente da distância do bairro do centro da cidade”, garante.

Subscrito pelo vereador Jurandy Carvalho (PL), o projeto voltou a tramitar no Legislativo municipal recentemente e foi aprovado pela maioria da Casa em agosto, mas acabou vetado integralmente pelo prefeito Colbert Martins (MDB) no início de setembro. Agora, o veto será apreciado pela Câmara.

A redação final do texto sofreu mudanças a partir das sugestões da Comissão de Proteção e Defesa Animal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Subseção de Feira de Santana e de representantes da sociedade civil, como os protetores independentes e associações ligadas à questão dos animais.

“Esse projeto é da sociedade e a Prefeitura concordando ou não a gente vai fazer todo um esforço para que essa lei possa vigorar e possa ser cumprida. A gente precisa cuidar das famílias sim, mas independente da opinião de qualquer um, maltratar os animais é crime e isso é inegociável”, ressalta Américo.

Em geral, cavalos, éguas, mulas, jumentos e similares são tradicionalmente utilizados como força motriz de carroças. Nos últimos anos, ativistas e organizações de proteção animal têm se manifestado contra essa prática, que resiste ao longo do tempo e ainda é muito comum no interior do estado e em áreas rurais, sendo uma alternativa barata para o transporte de cargas e mercadorias.

“A gente vê a todo tempo essa questão dos maus-tratos, do sobrepeso, animais prenhes carregando peso ou animais na frente de madeireira da cidade e construtoras o dia todo no sol sem beber água, sem ter um local de descanso”, analisa o secretário.

Do outro lado, carroceiros condenam os maus-tratos e abandono dos animais. Eles alegam que essas práticas são cometidas por um número pequeno de condutores e que estes devem ser fiscalizados e punidos sem prejuízo aos trabalhadores que cuidam bem dos animais.

“Do mesmo jeito que [os animais] trabalham na carroça, eles também recebem em dobro: ração, banho, comida, feno. Teve vez aqui de eu sair pra trabalhar de barriga vazia. Um, dois dias sem me alimentar pra dar comida ao animal. Eu largo de sair um dia de domingo pra ficar do lado dos bichos. ‘Meus animais são minha segunda família”, lembra Hugo dos Santos, de 19 anos.

Hugo é carroceiro e atua em Feira de Santana. Crédito: Acervo Pessoal
Hugo é carroceiro e atua em Feira de Santana. Crédito: Acervo Pessoal

O rapaz conta que desde criança acompanhava o tio nos serviços com a carroça. Há cerca de 7 anos, o carroceiro faleceu e Hugo passou a se encarregar do trabalho, utilizando os ensinamentos aprendidos e a carroça deixada pelo tio. Hoje, a renda da atividade ajuda nas despesas de uma menina de apenas um ano e cinco meses, que é filha de sua ex-esposa.

“Dependo da carroça para um bocado de coisa, pra arrastar uma comida pra porco, pra arrastar comida pra gado. Dependo da carroça pra trazer o meu ganha pão, o alimento para dentro da minha casa, pagar água, luz. Dependo da carroça pra sustentar uma casa e sustentar metade de meus animais”, conta o jovem morador do bairro Jardim Acácia.

Quatro anos

Segundo o programa, ao longo de quatro anos serão adotadas medidas para desestimular o trabalho de carroceiro. A ideia é acompanhar as famílias que utilizam os animais como ferramenta de trabalho e qualificar os condutores para que exerçam profissões formais e deixem de lado as carroças.

Em nota, a Comissão de Proteção e Defesa Animal da OAB de Feira, representada pela presidente Juliana Nascimento e pela vice-presidente Ticiana Sampaio, afirma que apoia o projeto de lei e justifica que o objetivo é resguardar os animais e as famílias que atualmente dependem dos animais para sua subsistência.

“Além de coibir a prática de maus-tratos aos animais e o descarte irregular de entulho, as famílias terão oportunidade de se capacitar e buscar outros meios de renda que não precisem da utilização das carroças e a exploração animal. Sendo gradual a retirada (ao longo de 04 anos), entendemos existir tempo hábil para implementação de fato da lei”, diz a nota.

Em outra perspectiva, Américo alega ainda que o projeto não gera custos para o Município, mas admite que a proposta exige uma readequação da administração pública, como a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SEMMAM) e a Superintendência Municipal de Trânsito (SMT), além de políticas já existentes, como os serviços de Assistência Social e da Casa do Trabalhador.

A ideia é implementar ações de qualificação dos carroceiros para que tenham outra fonte de renda. Apesar disso, não há um levantamento atual da quantidade de condutores atuantes ou sobre suas condições de trabalho na cidade. O último estudo foi realizado há 18 anos, quando havia 600 carroceiros cadastrados na Secretaria Municipal de Trabalho, Turismo e Desenvolvimento Econômico (SETTDEC).

“A lei também fala da importância de fazer esse mapeamento de acolhimento dessa família. A gente vai acionar todas as medidas possíveis para fazer um mapeamento até o final deste ano”, afirma Américo.

Tradição

Conhecido como Rastafari Carroceiro, o condutor Lafaiete critica a proposta. “O que é que o carroceiro vai fazer em outro serviço? No meu caso, eu tenho 49 anos, não sei nem ler. Eu vivo em cima da carroça. A gente não tem estudo praticamente. A barriga espera a gente estudar pra depois eles dar um emprego?”, questiona.

Já Antônio Martins, que trabalha em cima da carroça há mais de 40 anos, tem outros ofícios, como músico, pedreiro e ceramista. Mesmo assim, o feirense do bairro de Baraúnas assume sua preferência pelo serviço de carroceiro. “Eu gosto mais de trabalhar com minha carroça. Isso é uma tradição e, além de tradição, é uma profissão”, exalta Martins.

“A gente sustenta, cria a nossa família em cima da carroça. A gente não precisa pedir nada a ninguém. Desde antes de existir a cidade de Feira de Santana já existiam os carroceiros aqui. A carroça é uma tradição, é coisa que a gente tem um dom que já vem de família”, argumenta Rastafari.

Entre carros e carroças

A urbanização das cidades mudou os padrões de mobilidade, principalmente nos grandes centros. No lugar dos carros de tração animal, os automóveis ganharam protagonismo e o trânsito ficou cada vez mais intenso. Contudo, ainda é possível encontrar as tradicionais carroças disputando espaço com automóveis nas vias de municípios do interior da Bahia.

Feira de Santana tem um dos maiores entroncamentos rodoviários do Brasil, com rodovias federais e estaduais, além das avenidas e ruas da cidade. Segundo dados do Ministério da Infraestrutura, por meio da Secretaria Nacional de Trânsito (SENATRAN), a frota de veículos no município era de 327.281 em 2022. É a segunda maior da Bahia, atrás apenas de Salvador. A contagem inclui veículos automotores como carros, motocicletas, caminhões, caminhonetes e ônibus, além de articulados, reboques ou semirreboques, entre outros.

O Código de Trânsito Brasileiro permite o tráfego de veículos de tração animal desde que sigam as normas de circulação estabelecidas pelo órgão responsável pela via. De acordo com a legislação, quando não há faixa especial destinada à carroças e charretes, esses veículos devem ser conduzidos pela direita da pista, junto ao meio-fio ou no acostamento.

“O carroceiro quando vai no centro da cidade vai fazer o trabalho dele, ele não fica trafegando nem perambulando à toa não. Ele vai buscar um papelão pro sustento dele, vai limpar a cidade, vai tirar o entulho que às vezes um carro não pode ir”, opina o condutor Martins, que é pai de uma menina de 9 anos.

O registro e licenciamento desses meios de transporte obedecem à regulamentação municipal, assim como a autorização para conduzir os veículos de tração animal. Atualmente, já existe uma lei municipal em vigor que proíbe a circulação de carroças e outros veículos de grande porte em determinado período do dia apenas em algumas vias de Feira de Santana.

Ainda assim, o prefeito vetou integralmente o Projeto de Lei aprovado pela Câmara, apontando que a matéria seria competência privativa do Poder Executivo. Américo acredita que o projeto foi vetado por ter sido enviado com erros. A expectativa dos apoiadores é que o veto seja derrubado ainda neste mês e, em seguida, a Prefeitura realize um novo levantamento sobre os condutores.

“Houve um erro de técnica legislativa no momento que a Câmara enviou para o prefeito. Eles erraram o número do projeto e acabaram colocando o nome de outro vereador como autor do projeto. Já fizemos um parecer técnico e a gente vai pedir a revisão desse veto para que o projeto possa ser promulgado”, explica.

Fiscalização

Na região de Feira de Santana não é difícil encontrar animais soltos nas vias e nas proximidades do anel rodoviário, o que representa risco de acidentes. De maneira geral, os condutores de veículos de tração animal condenam essa prática e afirmam que nem sempre esses casos envolvem animais de carroceiros.

Além disso, motoristas e condutores de veículos automotores cobram fiscalização da Prefeitura por meio do Centro de Controle de Zoonoses, vinculado à Secretaria Municipal de Saúde. O serviço pode ser solicitado pela população através dos números 75 99967-3984 (para ligações) e 75 9851-8583 (mensagem via WhatsApp) ou ainda pelo 156 da linha Fala Feira.

Entretanto, Américo reconhece que o órgão não é o ideal, mas não há uma equipe especializada para atuar nesse tipo de situação. “A atuação do Centro de Zoonoses é um sacrifício a mais de uma equipe que na verdade não é própria para isso. A equipe acaba acumulando um trabalho extra, mas tem uma limitação muito grande de equipamento, de veículo e de profissionais para que possa dar a melhor atenção ao problema”, lamenta.

Outra questão apontada pelos defensores da proposta é o cuidado com o meio ambiente. Favoráveis à proibição atribuem aos carroceiros a prática do descarte irregular de lixo e entulho, que devem ser depositados no aterro sanitário da cidade. Esses trabalhadores são contratados pelos moradores por oferecerem um serviço mais barato, mas que pode desencadear problemas ambientais quando não há uma destinação adequada para os resíduos.

“Existem alternativas que podem ser colocadas de maneira muito tranquila para a população, sem prejuízo do serviço. De fato, é um problema que envolve toda a sociedade, desde o trânsito aos problemas ambientais e à questão dos maus-tratos. Um conjunto de fatores que nos obriga a buscar solução imediata para esse problema”, conclui o secretário Américo.

Por Lucas Leal

Fonte: Correio

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