Proibir as gaiolas de galinhas não vai tornar os ovos ‘humanizados’

Proibir as gaiolas de galinhas não vai tornar os ovos ‘humanizados’
Foto: EDWIN REMSBURG/VW PICS/GETTY

A nova lei de Utah, nos EUA, que obriga a produção de ovos em gaiolas até 2025 é, por assim dizer, “titica de galinha”.

“Uma vitória para os animais.” Foi o que o filósofo Peter Singer, um estudioso do movimento de proteção animal, classificou na semana passada quando o governador de Utah, Spencer Cox, assinou o Projeto de Lei 147 que determina que todos os ovos produzidos em Utah sejam de galinhas livres de gaiolas até 2025. Com a lei, o Estado de Utah se junta a outros oito estados, incluindo a Califórnia, o Colorado e o Massachusetts, que se tornaram livres de gaiolas nos últimos anos. “Este é um momento particularmente importante para nós”, afirmou a organização Humane Society of the United States em seu site, que fez pressão para a mudança. 

Galinhas livres de gaiola parecem uma vitória. Um número crescente de americanos afirmam se preocupar com o bem-estar dos animais e os danos causados por um sistema alimentar que poucos consumidores e eleitores entendem. Os proponentes entendem as leis, como as de Utah, como um passo a mais em direção a outras reformas e concessões que possam alinhar a pecuária com as exigências ambientais e éticas.

O problema é que estar livre de gaiola não significa uma condição melhor para as aves. Essas leis também não são necessariamente um primeiro passo para as reformas maciças de que as indústrias de ovos e aves necessitam desesperadamente.

O frango é o alimento favorito nos Estados Unidos. Em determinado ano, o americano médio comerá cerca de 54 quilos de frango. Para saciar o apetite do mercado interno e de exportação, os Estados Unidos abaterão cerca de nove bilhões de frangos todos os anos. Os americanos também adoram ovos, comem cerca de 300 cada por ano. Os 97 bilhões de ovos que os EUA produzem a cada ano são postos por 325 milhões de galinhas, a maioria das quais passa suas vidas em pequenas gaiolas individuais em granjas industriais. As indústrias de frango e ovo, no entanto, são duas coisas diferentes, produzem dois tipos completamente diferentes de aves: frangos de corte e poedeiras de ovos.

Não começou assim. Na virada do século 20, o frango não constava na dieta americana, e a maior parte da carne de frango consumida era de aves muito velhas para botarem ovos ou de pequenos rebanhos mantidos em fazendas que poderiam ser alimentados com restos e o que quer que eles pudessem desenterrar no quintal. Quando Herbert Hoover prometeu aos americanos uma galinha em cada panela, na campanha em 1928, ele estava prometendo não só prosperidade, mas provavelmente mais frango do que os criadores do país poderiam produzir. Isso rapidamente mudou com a ágil industrialização da agricultura americana, que incluía vegetais e animais.

Frangos adequados para produção em massa

Infelizmente para os frangos, eles são particularmente adequados para a produção em massa. Seu tamanho, capacidade de postura de ovos e proporção de conversão de alimentos (quão eficiente eles transformam alimentos em massa muscular ou ovos) são traços genéticos facilmente modificáveis, e as aves podem sobreviver ao serem amontoadas em gaiolas aglomeradas em celeiros. A partir da primeira década de 1920, as galinhas começaram a ser criadas com maior critério a fim de maximizar a sua produtividade para a produção de carne ou ovos, mas não ambos. A sua diversidade de raças e bem-estar foram sacrificados no altar da produtividade, o que preparou o palco para a expansão das primeiras fazendas de criação de frangos e, em seguida, a aplicação do modelo de criação industrial para porcos. Este processo, que a estudiosa de saúde ambiental Ellen Silbergeld chama de “frangonização” da pecuária americana, permitiu que os americanos comessem frango e ovos baratos e em abundância. O custo também é enorme.

Os danos causados pela indústria do frango estão bem documentados: frangos de corte não são criados em gaiolas, mas em grandes celeiros. Muitos sofrem ferimentos também pela superlotação e má assistência, além de simplesmente serem criados para crescer muito rápido, o que resulta em aleijamento e ossos fraturados. As condições deficitárias podem levar às doenças, incluindo as zoonóticas, como a gripe aviária H5N1, o que acarreta no uso generalizado de antibióticos a fim de bloquear as doenças bacterianas, o que, por sua vez, cria o risco de resistência aos antibióticos em seres humanos. Fazendas gigantes não só exigem grande quantidade de alimentos, como também geram grandes quantidades de lixo, derramados em córregos e que sufocam comunidades locais com cheiros nocivos. E trabalhadores de grandes fábricas de frango industrializados, que matam 140 galinhas por minuto, se machucam com frequência. Forçados a usarem fraldas porque a velocidade da linha e os gerentes não permitem pausas para irem ao banheiro, e, como aconteceu recentemente na Geórgia, podem morrer quando os produtos químicos usados em matadouros vazam. Ao longo da Covid-19, muitos se expuseram ao vírus através das condições de trabalho insalubres.

A indústria de ovos recebe menos atenção da mídia, mas não é menos problemática. O impacto ambiental de explorações maciças de ovos, incluindo resíduos e cheiros, é semelhante ao das explorações nas granjas, e os trabalhadores podem ser expostos a níveis perigosos de poeira e amoníaco. Depois existem as gaiolas. Na maioria das granjas, as galinhas ficam fechadas em gaiolas de meio metro quadrado, incapazes de se virar ou de abrir as asas. Elas vivem, comem, defecam e põem ovos a uma taxa de cerca de 300 por ano. Uma vez que a sua produtividade comece a diminuir, com cerca de 1,5 a 2 anos de idade, serão mortas e, porque não são criadas para corte, pois a super produção de ovos destruiu os seus corpos, acabarão em aterros ou em produtos processados à base de carne de baixa qualidade, como os alimentos para animais de companhia. E depois há o abate de pintos. A indústria de ovos não precisa de aves masculinas, uma vez que os machos de raças poedeiras não podem ser engordados para abate com tanto lucro como os frangos de corte. Isso significa que todos os anos cerca de sete bilhões de pintos do sexo masculino de um dia de vida são mortos, geralmente envenenados por gás ou triturados em moedores de alta velocidade que se assemelham a picadores de madeira. Ovos, em outras palavras, matam quase tantas galinhas como a carne de frango.

As galinhas livres das gaiolas, como têm sido na Califórnia e serão em Utah, não são libertadas das granjas industriais. A produção sem gaiola não significa que as galinhas sejam libertadas para bicar no chão e bater as suas asas ao sol. Na verdade, nem sequer está claro o que significa exatamente livre de gaiolas. Não existe uma norma única e legalmente definida para a produção sem gaiola. A Lei de Utah, como a da Califórnia, e antes dela, exige que os produtores cumpram os padrões mínimos de bem-estar animal, estabelecidos pela United Egg Producers, um grupo industrial. Estes definem o espaço mínimo disponível para cada galinha entre 30 cm e 45 cm quadrados cada, dependendo do tipo específico de habitação. Claro, isso pode permitir que elas se movam, todavia, de acordo com a pesquisa revisada por pares publicada na revista Poultry Science, 30 cm quadrados de espaço não permite que a galinha média se vire sem obstruções, e mesmo 45 cm quadrados não a deixam abrir suas asas. Para ser capaz de se mover confortavelmente, as galinhas precisariam de pelo menos 60 cm quadrados cada, mas idealmente muito mais. No entanto, proporcionar mais espaço a elas é inviável. Afinal de contas, o modelo de negócio das granjas industriais baseia-se na confinação de muitos animais em pequenos espaços, e as explorações das granjas livres de gaiolas continuam sem limite. E ainda não se tem certeza de que retirar as galinhas das gaiolas melhora o seu bem-estar. Os frangos livres de gaiolas e confinados desconfortavelmente em celeiros são feridos por outras aves, pois brigam por espaço ou para estabelecer a hierarquia. Como cientistas de animais observaram, o formato do espaço importa mais do que se é livre de gaiolas. E mesmo assim é incerto que o espaço, ao contrário da quantidade e qualidade dos alimentos, ter acesso à água, além de não terem seus bicos aparados, é o fator decisivo para melhorar o bem-estar dos animais.

Pode parecer cinismo criticar os consumidores e os ativistas dos direitos dos animais por celebrarem vitórias para os animais. Grupos pró-animais, como a Humane Society dos Estados Unidos (HSUS), empreendem uma cômica guerra assimétrica contra os maus-tratos de animais usando todos os meios à sua disposição para desafiar corporações de bilhões de dólares do agronegócio e apelar para a ética de um público que, em geral, não só come animais, mas despreza aqueles que os defendem. A HSUS, de longe a maior organização de interesse dos animais nos EUA, tem uma receita anual de 249 milhões de dólares e um orçamento operacional de 200 milhões de dólares; já a People for the Ethical Treatment of Animals (PETA), a segunda maior, gasta 60 milhões de dólares por ano. A fim de comparação, o maior produtor de ovos do país, Cal-Maine Foods, com sede no Mississippi, arrecadou 1,3 bilhões de dólares no ano passado. O fato de esses grupos poderem conquistar apoio público e pressionar os políticos a aprovarem alterações da regulamentação em todo o estado, face à propaganda maciça da pecuária, é um feito absolutamente hercúleo.

A maior questão, no entanto, é se estar livre de gaiola é suficiente e se pode ser um passo gradual para tornar o sistema alimentar mais generoso com os animais. Há um longo debate nos grupos dos direitos dos animais, entre os chamados abolicionistas e os assistencialistas. Os primeiros argumentam que o objetivo final do ativismo pró-animal é algo próximo do veganismo universal e do fim da agricultura animal; os defensores do segundo, argumentam que qualquer vitória que melhore a vida dos animais vale a pena perseguir. Os dois grupos estão frequentemente em desacordo sobre táticas e teorias políticas de mudança.

Paradoxo humano: mais animais sofrem, mas cada um sofre um pouco menos

Mas não precisamos tomar posições intransigentes sobre os direitos dos animais para questionar a lógica de prosseguir nas mudanças gradativas na produção animal como ficar sem gaiola. Não só os benefícios sociais das fazendas livres de gaiolas são questionáveis, como ganhar legislação livre de gaiolas é um trabalho árduo. Atualmente, muito devido aos esforços de grupos como o HSUS, cerca de 30 por cento das galinhas poedeiras do país estão livres de gaiolas. Entretanto, dos cinco maiores estados produtores de ovos do país, apenas a Califórnia, onde os eleitores estão unicamente motivados para votar em melhorias no bem-estar dos animais, passou a legislação livre de gaiolas (Utah nem sequer está entre as 10 mais em termos de capacidade de produção de ovos). Conquistar vitórias semelhantes em estados pecuaristas intransigentes, como Iowa e Ohio, será mais difícil. E não está claro se triunfar nos esforços para livres de gaiolas cria ímpeto para outras vitórias. Mesmo sem essa regulamentação, os produtores de ovos anunciam com ímpeto ovos livres de gaiola em caixas de papelão e cobram os preços pelo prêmio. Se grupos como o HSUS anunciam livres de gaiolas como uma grande vitória para os animais, muitos consumidores podem ficar tranquilos de que os seus ovos são humanizados, afinal de contas. Convencendo-os com campanhas futuras de que esse não é o caso pode não funcionar. E nada disso aborda a miríade de outros danos da produção de frango, como o abate de pintos ou os impactos sobre os trabalhadores, o meio ambiente e as comunidades locais.

O problema não são as gaiolas: é o modelo de criação industrial em si. Quaisquer reformas adicionais que permitam às granjas industriais operarem de forma rentável sem reduzir significativamente a sua produção, não desafiam com firmeza este modelo. Pense nisso como uma assíntota em um gráfico: uma linha da qual você pode se aproximar, mas não irá alcançar. Mesmo que grupos como o HSUS possam continuar a ganhar concessões incrementais, o que poderá melhorar ligeiramente a vida de cada animal, isso fará pouco para mudar fundamentalmente a forma como nosso sistema alimentar trata os animais que produz ou para conter a expansão das fazendas industriais ou o consumo de carne e ovos. Chamem isso de paradoxo humano: mais animais sofrem, mas cada um sofre um pouco menos.

Ainda não saímos da pandemia da Covid-19, mas o consenso científico é de que a próxima pandemia será provavelmente de origem zoonótica, possivelmente proveniente de criação aviária. O nosso pesado sistema alimentar de produção animal também está para esgotar os limites ambientais num momento de aceleração da crise ecológica. Mais cedo ou mais tarde, os americanos terão de enfrentar a confusão que é o sistema agropecuário e o impacto das dietas americanas. Isso vai exigir introspecção individual, política e de mudança, além de exigir resultados muito maiores do que em Utah, entregue em 17 de março. A Lei 147 não é uma vitória nem uma razão para nos sentirmos melhor quando se trata de comer ovos. No mínimo, é um lembrete da dimensão da luta que temos pela frente.

Por Jan Dutkiewics / Tradução de Alan Dalles

Fonte: New Republic

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